Bolsonaro faz jogo retórico e leva acusação de golpe para disputa de narrativa

Folha de S.Paulo

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tem buscado levar para a disputa de narrativas algumas das principais evidências que pesam contra ele no processo da trama golpista.

Denunciado sob acusação de ter procurado apoio dos comandantes das Forças Armadas a um decreto que instituiria um estado de exceção no país após ter sido derrotado nas eleições de 2022, o ex-mandatário acumula declarações públicas em que ite ter discutido algum tipo de alternativa no apagar das luzes de seu governo.

A tal fala, que para alguns pode soar como uma confissão, Bolsonaro adiciona, porém, que tudo que estudou estaria dentro das “quatro linhas”. Diz ainda que nunca falou em “golpe”.

Segundo a Constituição, no entanto, as alternativas citadas por Bolsonaro, como estado de sítio e de defesa, não servem ao propósito que movia o ex-presidente: o de insatisfação com o resultado das urnas, que deram a vitória a Lula (PT).

Enquanto o estado de defesa pode apenas ser decretado quando a ordem ou a paz social estiverem ameaçadas “por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”, o estado de sítio, ainda mais gravoso, se aplica a situações de guerra, agressão armada estrangeira ou de comoção grave de repercussão nacional.

Estudiosa do chamado legalismo autoritário, a professora de direito Heloísa Câmara, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), aponta que, assim como ocorreu em outros momentos da história brasileira, Bolsonaro busca usar o direito como fonte de legitimidade para atos que são em si mesmo inconstitucionais.

“Esse jogo do que é constitucional e do que é excepcional não é novidade na nossa história”, diz ela, que relembra o fato de a própria ditadura militar ter se organizado a partir de uma base fortemente legalista, dando como exemplo o Ato Institucional nº 1, que buscava dar uma verniz jurídico para o golpe de 1964.

“É uma retórica que serve para enfraquecer e para criar essa incerteza do que é jurídico, do que é estado de Direito, do que é um estado constitucional e do que não é”, afirma.

“Uma eleição que foi vencida por um outro candidato e que se tenta utilizar qualquer mecanismo, seja constitucional ou infraconstitucional, para não fazer a sucessão do poder se enquadra num conceito clássico de golpe”, explica.

Enquanto Bolsonaro aposta parte de suas fichas no plano da disputa narrativa, sua defesa jurídica tem como foco, por outro lado, desacreditar parte das evidências, como a delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, e adota debate técnico sobre o enquadramento criminal de golpe de Estado.

Em peça protocolada no STF, sua equipe de advogados argumenta que, mesmo que fosse possível confiar nas palavras do delator, a “suposta minuta do decreto” estaria numa etapa que não é punível: a de atos preparatórios.

“[A suposta minuta] não é ato capaz de ultraar o limite da preparação, jamais invadindo a esfera da execução dos chamados crimes contra as instituições democráticas”.

Nesse sentido, destaca que o documento nunca foi assinado, discurso adotado igualmente por Bolsonaro, que adiciona que tampouco convocou o Conselho da República (órgão que deve ser ouvido previamente à decretação deste tipo de medida).

Aprovados em 2021 e sancionados pelo próprio Bolsonaro, tanto o crime de golpe de Estado quanto o de abolição do Estado democrático de Direito pelos quais o ex-presidente é acusado já punem a própria tentativa.

O advogado Vinícius Assumpção, que é doutor em direito pela Universidade de Brasília (UnB) e diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), afirma que, apesar de serem possibilidades previstas na Constituição, não há norma que permita invocar estado de defesa ou de sítio para se contrapor a um contexto eleitoral democrático e legítimo.

“A cogitação dessa possibilidade e, depois da cogitação, a implementação de atos voltados à execução dessa iniciativa são, no meu entendimento, tentativas de dar uma roupagem jurídica constitucional a algo que é nitidamente uma postura golpista”, diz.

Ele aponta ainda assim que há um conjunto de fatores que tornam o debate jurídico em torno do caso complexo, como o ineditismo do tipo de situação que está sendo julgada e o fato de os tipos penais envolvidos no processo estarem sendo usados pela primeira vez nos últimos anos.

Assim como há nuances que afastam a defesa formal dos discursos públicos do ex-presidente, também do ponto de vista cronológico sua postura frente às chamadas minutas golpistas sofreu alterações.

Apesar de o primeiro documento do tipo ligado a membros do governo Bolsonaro ter sido descoberto ainda em janeiro de 2023, a primeira vez que o ex-presidente fez uma declaração em que parecia itir algum tipo de envolvimento foi quase um ano mais tarde.

“O golpe é porque tem uma minuta de um decreto de estado de defesa. Golpe usando a Constituição? Tenham santa paciência”, disse ele em ato na avenida Paulista em fevereiro de 2024, gerando grande repercussão.

Duas semanas antes dessa fala, a PF tinha feito uma operação contra alguns de seus aliados e militares de alta patente, com base em mensagens identificadas que tratavam da discussão sobre um decreto golpista.

Além disso, àquela altura, a descoberta no celular de Cid de um outro documento, este prevendo estado de sítio ao invés de defesa, era pública há meses, assim como já tinha sido noticiada parte de sua delação relatando discussões envolvendo o decreto.

Em março de 2024, viriam à tona ainda os depoimentos de dois ex-comandantes das Forças Armadas, que reforçaram as evidências de que Bolsonaro teria atuado para evitar a posse de Lula e constam hoje como testemunhas centrais na ação da trama golpista.

Segundo o relato de Freire Gomes, ex-comandante do Exército, documento apresentado por Bolsonaro aos chefes militares em reunião em dezembro tinha o mesmo teor da minuta encontrada pela PF na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres poucos dias depois dos ataques na praça dos Três Poderes.

Em 2023, ao rebater a inclusão do documento como prova em ação no TSE, a defesa eleitoral de Bolsonaro argumentava que, além de a minuta não ter sido assinada nem ter sido encontrada em posse dele, tampouco havia indícios de que ele teria participado de sua redação.

“Não há qualquer evidência ou notícia de que dele se tenha dado conhecimento a qualquer autoridade ou cidadão”, afirmava a peça à época, antes desses outros elementos virem à tona.

“Não se tem notícia de qualquer providência de transposição do mundo do rascunho de papel para o da realidade fenomênica, ou seja, nunca extravasou o plano da cogitação”.